segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

PÉROLA NEGRA DO MÊS DE FEVEREIRO DE 2016 - LUZ SANTOS


A Pérola Negra de Fevereiro é ...


... nossa bela pernambucana no mês do Carnaval
Professora Universitária que estimula o respeito às diversas culturas e etnias

Bela e valiosa como uma pérola negra

quando ainda era uma promessa
"MULHER, NEGRA, POBRE E NORDESTINA
Por Luz Santos[1]
Assim sou eu, Maria Luzitana Santos, também conhecida por Luz Santos. Desde a adolescência, percebi que estas “condições” não eram muito favoráveis, do ponto de vista social e enquanto sujeito oprimido.
Também percebi que ser oprimida não é ser vítima. Significa aceitar minha posição histórica na sociedade por ser mulher negra. Posição que me foi apresentada desde a primeira infância, nos insultos recebidos no jardim da infância quando era chamada de “nega do cabelo pixaim”. Mas insulto por quê? É pixaim mesmo. E daí?
Pena que naquela idade não tinha orientação política o suficiente para não me sentir inferiorizada. Que raiva! E a posição de oprimida foi, por muitas vezes reforçada pelo discurso da então Diretora da Escola: “ela é negrinha sim, mas tem alma branca”. Alma lá tem cor? Criança sabe que alma não tem cor? Às vezes não. Mas criança sabe o que é ficar constrangida só por existir. Isso não precisa ninguém ensinar.
Usar farda, ter os chamados bons modos e fala tranquila nunca foi o suficiente para que eu me sentisse liberta. A prova disso é que mesmo sabendo, à época, abrir escalas e fazer vários passos de contorcionismo e piruetas, nunca fui chamada para ser baliza nos desfiles da Independência. Será que foi apenas por que o meu padrão negrinha não atendia ou por que nunca fiz a minha autodefesa? Por que tinha que ‘esperar’ ser escolhida? Por que nunca fui atrás daquele lugar se era tão importante para mim? Como tomar estas atitudes em um ambiente escolar onde se diz que ser negro não é problema mesmo com o número minoritário de negros?
Estudar na melhor escola do bairro, aos olhos da minha família que dizia: vale apena o esforço financeiro, assim você ‘será gente quando cresce’, não me parece, hoje, a melhor das estratégias formativas. Às vezes, aprende-se muito mais sobre sua identidade étnica nos ditos piores lugares. Piores para quem? Quem determina a visão maniqueísta de melhor ou pior? Não duvide: há um sistema que determina isso, inclusive ‘quem será gente’.
Depois das primeiras fases formativas, veio o período do estágio quando fazia escola técnica. Tantos lugares no mundo para estagiar, mas onde fui cair: no Sindicato dos Cultivadores de Cana de Açúcar. Minha mãe, minha avó e minha bisavó tinham trabalhado para a mesma família vinculada ao órgão. Como seria diferente para mim? Destino traçado antes mesmo de eu nascer.
Então lá fui eu. Magricela, extremamente tímida, mas muito sonhadora. Estudava pela manhã, engolia na hora do almoço, corria para o curso de datilografia e passava a tarde toda no estágio. Fiz excelentes e grandes amigos pelos quais tenho apreço e muito carinho até hoje. Alguns infelizmente já falecidos. Mas há alguém que tenho especial respeito pelo seu posicionamento humano, o meu ex-chefe, Dr. Scroggie Hawson, então chefe do Departamento Jurídico Cível.

O FATO
Depois de mais de uma hora procurando (e sem encontrar) um processo cível com prazo para defesa no dia seguinte, ouvi de um sindicalista, fornecedor de cana, que não queria mais ser atendido por uma negrinha. Que ele ia perder o prazo e por causa daquilo eu ia “pagar” por não encontrar o processo dele. Seria demitida!

A SURPRESA
Em um ambiente no qual cheguei literalmente pisando em ovos, mas que me firmei pelo compromisso com o trabalho e aprendizagem, nunca esperei aquele tipo de tratamento no estágio. E o pior, no momento estava praticamente sozinha no departamento. A secretária titular tinha aproveitado que todos os advogados estavam viajando (em audiências em outras cidades) e tinha ido ao médico, em uma consulta que há tempo precisa fazer.

O MEU ERRO
Um técnico de informática ouviu e presenciou tudo. Única testemunha, logo contou para os advogados que foram chegando ao final da tarde. Só assim soube que o procurado processo estava com um dos advogados. Ele ficou muito envergonhado por ter retirado o processo e não ter registrado nas fichas de acompanhamento. Mas vergonha não resolve problemas de insulto, desrespeito a diferença e desumanidade. Eu, do alto dos meus recentes 16 anos, tinha ficado mortificada. Nunca, durante toda a minha jovem vida, havia passado por situação semelhante. Nem mesmo as piadinhas da escola tinham me abalado tanto. Voltei no outro dia decidida a não mais estagiar naquele lugar. Não porque eu não merecesse estar lá, mas por que eu achava que eles não mereciam que eu estivesse lá. Lógico que eu estava assustada e totalmente errada. Aliás, estava com muito medo e reagindo as relações de poder.

O DESDOBRAMENTO
Cabe ressaltar que aquele sindicalista representava naquele momento (e ainda o é hoje) todo um sistema opressor, cruel, feroz e desumano. Quando o dia seguinte chegou, apresentei-me no estágio para entregar as tarefas que estavam sob a minha responsabilidade e fui falar com o meu chefe. Ele disse que não poderia me atender naquele momento. Pediu que eu aguardasse e achei estranho, pois ele foi logo para a máquina elétrica (estavam instalando computadores e ele, ainda aprendia a utilizar a ferramenta de informática). Vinte minutos depois me chamou em sua sala, assinou um documento e pediu que eu o acompanhasse. Eu tentei falar que precisava contar algo que havia acontecido e já estava ciente da minha demissão, mas ele não me deu oportunidade de falar. Pediu que eu o acompanhasse. Quando me vi, estava na sala do presidente do Sindicato presenciando um dos momentos mais marcantes da minha vida: o meu chefe estava entregando a sua carta de pedido de demissão, alegando que não ficaria trabalhando em uma instituição na qual infelizmente ainda prevalecia a discriminação racial.
O presidente e todos os presentes (cerca de 20 fornecedores) ficaram tão surpresos quanto eu. No final, ninguém foi demitido. Contudo, aprendi o valor da luta, do posicionamento firme, da atitude consciente que dignifica e liberta. Hoje, preferia eu mesma ter tido coragem para dizer tudo o que aquele sindicalista (fornecedor de cana) merecia ouvir. Mas, contar com a atitude do meu ex-chefe contribuiu e muito para que eu me auto afirmasse.

A SUPERAÇÃO
Scroggie Hawson não assumiu a posição de meu “anjo da guarda”. Sempre me deu bronca quando não atingia os objetivos e metas, mas virou um mentor pessoal. Foi o meu maior incentivador para que eu fizesse vestibular. Chegou a querer me emprestar o dinheiro da matrícula na faculdade particular, antes de eu ir para a Universidade Federal de Pernambuco. Também me incentivou a fazer o concurso público e acreditou em mim quando até pessoas mais próximas pareciam duvidar.
Suas broncas, cobranças e incentivos fizeram-me perceber que ser mulher, negra, pobre e nordestina não deveria ser o meu único destino. Fui ser também universitária, servidora pública, gerente de Recursos Humanos, membro de comissão de licitação, Secretária de Pós-graduação, batuqueira em grupo de percussão e professora universitária. E o que mais? O futuro dirá. Mas se tem algo que mais me orgulho é de ser negra – de ser a diferente em meio a multidão e de me fazer respeitar pelo caminho do respeito à diferença e da luta."








[1] Professora do curso de Secretariado Executivo Bilíngue da UFPB. Pedagoga. Especialista em Gestão da Qualidade e Produtividade. Especialista em Docência do Ensino Superior. Mestre em Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável.

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